lunario Posted November 28, 2004 Share Posted November 28, 2004 A Invenção do Amor . Em todas as esquinas da cidade nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga um cartaz denuncia o nosso amor . Em letras enormes do tamanho do medo da solidão da angústia um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel numa tarde de chuva entre zunidos de conversa e inventaram o amor com caracter de urgência deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana . Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura e souberam entender-se sem palavras inúteis Apenas o silêncio A descoberta A estranheza de um sorriso natural e inesperado . Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta de um amor subitamente imperativo . Um homem e uma mulher um cartaz denuncia colado em todas as esquinas da cidade A rádio já falou A TV anuncia iminente a captura A policia de costumes avisada procura os dois amantes nos becos e nas avenidas Onde houver uma flor rubra e essencial é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo É preciso encontrá-los antes que seja tarde Antes que o exemplo frutifique Antes que a invenção do amor se processe em cadeia . Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos Chamem as tropas aquarteladas na província Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências O perigo justifica-o Um homem e uma mulher conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade . É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los antes que seja tarde e a memória da infância nos jardins escondidos acorde a tolerância no coração das pessoas . Fechem as escolas Sobretudo protejam as crianças da contaminação uma agência comunica que algures ao sul do rio um menino pediu uma rosa vermelha e chorou nervosamente porque lha recusaram Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão Aplicado no entanto Respeitador da disciplina Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado e submetido a um tratamento especial de recuperação Mas é possível que haja outros É absolutamente vital que o diagnóstico se faça no período primário da doença E também que se evite o contágio com o homem e a mulher de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade . Está em jogo o destino da civilização que construímos o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos a verdade incontroversa das declarações políticas . É possível que cantem mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz lhe lembravam a infância Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa das montanhas Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior Mas caminhou cantando para o muro da execução foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele um misterioso halo de uma felicidade incorrupta . Procurem a mulher o homem que num bar de hotel se encontraram numa tarde de chuva Se tanto for preciso estabeleçam barricadas senhas salvo-condutos horas de recolher censura prévia à Imprensa tribunais de excepção Para bem da cidade do país da cultura é preciso encontrar o casal fugitivo que inventou o amor com carácter de urgência . Os jornais da manhã publicam a notícia de que os viram passar de mãos dadas sorrindo numa rua serena debruada de acácias Um velho sem família a testemunha diz ter sentido de súbito uma estranha paz interior uma voz desprendendo um cheiro a primavera o doce bafo quente da adolescência longínqua . . . Daniel Filipe Link to comment Share on other sites More sharing options...
darksideoftheMooN Posted November 30, 2004 Share Posted November 30, 2004 Mais um bocadinho... ;) "Somos a alegria o corpo e o sal da terra O sol das manhãs férteis a música do outono A própria essência do amor a força das marés Somos o tempo em marcha" Filipe, Daniel Damásio Ascensão (1925 - 1964) Poeta nascido na ilha da Boavista, em Cabo Verde, veio ainda muito novo para Portugal, onde acabaria por realizar os seus estudos liceais. Trabalhou na extinta Agência-Geral do Ultramar e na área jornalística. Foi co-director da revista de poesia Notícias do Bloqueio colaborando em publicações como Bandarra, Seara Nova e Távola Redonda, entre outras. Militante antifascista, foi por várias vezes perseguido, preso e até mesmo torturado pela PIDE-DGS. É o autor dos livros de poesia Missiva (1946), Marinheiro em Terra (1949), Recado Para a Amiga Distante (1956), A Ilha e a Solidão (1957), assinado com o pseudónimo de Raymundo Soares, A Invenção do Amor e Outros Poemas (1961) e ainda de Pátria, Lugar de Exílio (1963). Na sua poesia verifica-se uma mudança gradual a nível temático. Inicialmente a temática era predominantemente africana, com um certo tom folclórico e uma linguagem pouco elaborada. Posteriormente, surgem temas contemporâneos. Daniel Filipe apresenta então uma poesia de combate ideológico e de comprometimento social. Esta última fase reflecte a sua vivência pessoal, aproximando-o da corrente neo-realista. Para tal evolução contribuiu a influência dos poetas neo-realistas portugueses e franceses. Só conhecia o nome, nunca tinha lido... obrigada, lunario :flowers: Link to comment Share on other sites More sharing options...
Pure_Water Posted November 30, 2004 Share Posted November 30, 2004 n deve ter bastado levar kom poesia o 12º todo.... Link to comment Share on other sites More sharing options...
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